Nerdices Filosóficas – V de Vingança e a Banalidade do Mal
Para compreender a coluna veja a página de explicação.
Autor: Tiago de Lima Castro
Revisão: Paulo V. Milreu
Vitrine: Valério Gamer
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Recentemente, a máscara de Guy Fawkes estilizado de V, personagem do quadrinho V de Vingança (V for Vendetta)
de Alan Moore e David Lloyd, transformou-se em um símbolo de diversas
manifestações, em grupos como Anonymous, dentre outros, tanto no Brasil
como no exterior.
Filme e quadrinho são obras diferentes, sendo o uso da máscara
inspirado no filme. Entretanto, ambas são bem interessantes e merecem
análises político-filosóficas. Neste número o foco será o quadrinho.
A história se passa numa Inglaterra distópica em 1997, pois o
quadrinho foi escrito em 1981 como uma reação de Moore à política de
Margaret Thatcher. Nesta distopia, a Inglaterra é governada por
fascistas que vigiam tudo, sendo V um terrorista anarquista que luta
contra o sistema.
O que chama atenção é a dubiedade moral de todos os personagens:
fascistas, Evey e V, todos são extremamente humanos, devido a Moore
desenvolver uma dupla narrativa, tanto do ponto de vista de V e de Evey,
como das investigações policiais de seus atos. Ele não é exatamente um
messias, um ser acima da condição humana; mesmo os vilões não são
monstros demoníacos. Todos os personagens são humanos, dúbios moralmente
e apresentam argumentos para o seu posicionamento. O mal que os
fascistas praticam não advém de uma natureza maléfica, mas da banalidade
do mal, como diria a filósofa Hannah Arendt (1906-1975).
Hannah Arendt foi uma filósofa judia e alemã que conseguiu escapar da
política antissemítica nazista, chegando a exilar-se nos EUA.
Posteriormente, quando Adolf Eichmann, membro da SS, foi pego na
Argentina em 1960 e levado a Israel para julgamento, Arendt presenciou o
processo para escrever uma reportagem. Naturalmente, ela esperava
encontrar um monstro cruel e psicótico a sua frente, afinal, ele esteve
diretamente envolvido na logística de extermínio de judeus. Porém, ela
encontrou um homem comum, banal, bom pai de família, bom vizinho… Ele
fora, simplesmente, um homem querendo subir em seu cargo, executando as
ordens de seus superiores sem raciocinar ou refletir sobre aquilo que
fazia, ou seja, um mero burocrata cumpridor de ordens e executor de seus
deveres profissionais. A violência e extermínio eram intrínsecos ao
sistema, somados à falta de reflexão individual chega-se à crueldade.
Quem nunca fez o melhor no seu trabalho para mantê-lo, buscando
conquistas financeiras e melhor qualidade de vida para si e sua família?
Ao analisar pessoas que realizaram atos de extrema crueldade ao longo
da história, vê-se que são majoritariamente pessoas normais cumprindo
ordens de instâncias superiores. Somente uma reflexão sobre o ato
poderia evitar sua execução, sendo a simples obediência e aceitação da
normalidade destes atos a maior fonte de crueldade na história. Isto é a
banalidade do mal, conceituada por Arendt, onde pessoas normais acabam
executando atos cruéis pela mera banalidade de cumprir ordens e serem
normais. V de Vingança representa esse drama da natureza humana na maneira como a narrativa é conduzida.
A complexidade da natureza humana possibilita estes descaminhos
históricos, na análise de Arendt, sendo que cada um de nós pode estar
praticando o mal de maneira banal sem ao mesmo dar-se conta disso.
Tende-se a pensar a banalidade do mal na ação de militares e policiais,
mas em um esforço de pensamento, talvez se possa vê-la no cotidiano
profissional. O difícil é que este movimento de reflexão precisa colocar
em dúvida aquilo que se considera como normalidade, daí vermos todo o
processo de libertação imposto a Evey por V, para que ela sinta-se
livre. Perceber a possibilidade de realizar o mal em nossa banalidade é
um ato de libertação, e de certa violência contra aquilo que se mostra
como normal.
Pense, amigo Leitor: Quando se vê uma criança com fome, na rua e não
se sente nada e ainda compreende como algo normal, não é uma prática
banal do mal? Quando somos complacentes com a corrupção, oferecendo
suborno a um guarda de trânsito, por exemplo, não é uma prática banal do
mal? Quando negamos a existência de garis, funcionários da área de
limpeza ou empregas domésticas não os cumprimentando ou enxergando-os,
não é uma prática banal do mal, sem comentar sobre a terrível prática de
fazê-los entrar escondidos em elevadores e entradas específicas para
isso?
Necessita-se pensar o conceito de banalidade do mal em diversas
instâncias de nossa vida, como utilizá-lo para compreender policiais,
militares, funcionários de hospitais públicos, entre outros. Neste
momento de busca de transformação, a banalidade do mal precisa ser
refletida em nossa própria banalidade num ato de vigilância para não
perder-se a própria liberdade pela falta de reflexão sobre os atos.
As referências ajudam a compreender o tema, mas há outras análises possíveis V de Vingança, sendo esta somente uma primeira abordagem.
Fontes de Aprofundamento
A banalidade do mal e as possibilidades da educação moral: contribuições arendtianas, Marcelo Andrade
Alan Moore: O Mago das Histórias em Quadrinhos, Gary Spencer Millidge
Eichmann em JerusalémUm Relato Sobre a Banalidade do Mal, Hannah Arendt
O Labirinto do Fauno, Hannah Arendt e a Banalidade do Mal, Tiago de Lima Castro
V de Vigança, Alan Moore e David Lloyd
Violência e banalidade do mal, Odílio Alves Aguiar.
Alan Moore: O Mago das Histórias em Quadrinhos, Gary Spencer Millidge
Eichmann em JerusalémUm Relato Sobre a Banalidade do Mal, Hannah Arendt
O Labirinto do Fauno, Hannah Arendt e a Banalidade do Mal, Tiago de Lima Castro
V de Vigança, Alan Moore e David Lloyd
Violência e banalidade do mal, Odílio Alves Aguiar.
Publicado originalmente em: http://randomcast.com.br/nerdices-filosoficas-v-de-vinganca-e-a-banalidade-do-mal/
© 2013 Tiago de Lima Castro
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