Nerdices Filosóficas – A escravidão de Dobby em Harry Potter: a consciência-de-si como escravo
Autor: Tiago de Lima Castro Revisão: Juan Villegas Vitrine: Valério Gamer |
Ao ver o filme, ou ler o livro, Harry Potter e a Câmara Secreta,
conhecemos Dobby, um elfo-doméstico da família Malfoy, o qual segue o
destino de todos os de sua espécie, que é serem escravos domésticos de
bruxos. Ao final, Dobby é liberto por um estratagema de Harry para fazer
o próprio Lúcio Malfoy libertar Dobby, dando-lhe uma meia.
Focando-se nesse aspecto surge a grande questão: Por que ele
mantinha-se como escravo? A roupa é a libertação de um encantamento que o
escravizava, ou somente ele mesmo considerava-se escravo e, portanto, a
entrega da meia era somente um processo dele reconhecer-se como um ser
livre?
Podemos utilizar o pensamento do filósofo
Hegel (1770-1831), naquilo que ficou conhecido com a dialética do
senhor e do escravo, com a ajuda da leitura de Alexandre Kojève
(1902-1968) que vai influenciar o trabalho psicanalítico de Jacques
Marie Lacan (1901-1981).
Na obra Fenomenologia do Espírito,
Hegel estuda o processo em que o espírito vai criando a si mesmo no
processo histórico. É como se a humanidade caminhasse continuamente para
alcançar o conhecimento absoluto, processo de autodescobrimento, mas
não do ponto de vista do indivíduo somente, mas do espírito, da
humanidade como um todo, e talvez além.
Nesse processo, o indivíduo vai
desenvolvendo a consciência-de-si, ou seja, reconhecendo a si mesmo,
saindo do senso-comum e das experiências empíricas vivenciadas na
história para uma síntese que é o reconhecimento de si mesmo.
Fugindo um pouco da terminologia de
Hegel, pensemos no senhor, o dono do escravo, no exemplo, Lúcio Malfoy.
Para reconhecer a si mesmo enquanto senhor ele necessita de outro, o
escravo, o qual ele necessita destruir, metaforicamente falando, de
maneira a reconhecer a si mesmo enquanto senhor, sendo o escravo,
portanto, somente um meio para o desenvolvimento da consciência-de-si
como um senhor, com todo seu poder e tudo o mais. Esse é um processo de
negação, onde o senhor nega a existência de outro, o escravo, para
reconhecer a si mesmo enquanto senhor.
Neste processo, a consciência-de-si
somente acontece pela existência do outro. Afinal, como Lúcio Malfoy
reconheceria a si mesmo enquanto senhor sem ter um escravo como Dobby?
Sem este escravo trabalhar e o senhor receber os frutos desse trabalho, o
senhor não pode se reconhecer como um senhor… Vejamos que há uma
dependência do senhor para o escravo, já que sem o escravo ele não se
reconhece como senhor.
O escravo, também enquanto consciência,
não tem consciência de si, sendo sua consciência a do senhor. Parece
complicado, mas vamos com mais calma…
Percebamos que Dobby, e outros de sua
raça, reconhecem a si mesmos como escravos. Dobby reconhece a si como um
escravo de Lúcio Malfoy, nem ao menos imaginando que pode deixar de ser
escravo. Independente de alguma explicação mágica que possa constar nos
livros, no fundo Dobby é escravo por sentir-se como um escravo, por
reconhecer a si mesmo como um escravo de Lúcio Malfoy. Quem não garante
que a qualquer momento ele poderia simplesmente ir embora da casa dos
Malfoy?
Dessa maneira, a função da meia é somente
levá-lo a reconhecer a si mesmo como não-escravo, como senhor de si
mesmo, sendo também um processo de negação, pois com a meia ele passa a
negar Lúcio Malfoy enquanto seu senhor.
Na série, vemos que há elfos-domésticos
que nem mesmo gostam de receber roupas, pois sentem que não fizeram um
bom trabalho. O reconhecimento de si enquanto escravo de seus senhores é
tão grande, que nem ao menos gostam da idéia de serem livres. O próprio
Dobby não consegue dizer eu, falando de si mesmo na terceira pessoa,
afinal, como ele é escravo, sua consciência é a de seu senhor.
Essa metáfora hegeliana permite-nos
compreender uma série de processos de exploração, como a escravidão,
relações trabalhistas, bullying, certos namoros e casamentos, pois são
processos de nossa própria consciência, como Kojève e Lacan irão ler em
Hegel. Em quantos momentos somos subjugados por outra pessoa, exatamente
por não reconhecermos a nós próprios como uma consciência-de-si?
Se você, amigo Leitor, sente-se
hostilizado, ou mesmo humilhado, na escola, no trabalho, pense o quanto
isso ocorre, pois você mesmo se vê como alguém naturalmente apto a ser
hostilizado e humilhado. Compreenda que aqueles que fazem isso com você
necessitam disso para reconhecer-se como consciências, mas que isso só é
possível enquanto você mesmo se vê como alguém a ser hostilizado e
humilhado.
Dobby necessitou de um estratagema de
Harry para deixar de reconhecer-se como um escravo. Você mesmo pode
fazer sua própria meia, não através da violência física, mas do
reconhecimento de si mesmo como alguém digno e merecedor de respeito.
Fontes de aprofundamento
Fenomenologia do Espírito, G. W. F. Hegel
Harry Potter e a Câmara Secreta, J. K. Rowling
Publicado originalmente em: http://randomcast.com.br/nerdices-filosoficas-a-escravidao-de-dobby-em-hary-potter-a-consciencia-de-si-como-escravo/
© 2013 Tiago de Lima Castro
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