Nerdices Filosóficas – “Corra, Lola, Corra” e o Existencialismo
Para compreender a coluna veja a página de explicação.
Autor: Tiago de Lima Castro Revisão: Mey Linhares Vitrine: Valério Gamer |
“Corra, Lola, Corra” (Lola Rennt) é um filme alemão
de 1998, dirigido por Tom Tywker. Conta a história de Manni, que
esquece uma sacola com 100.000 marcos alemães no metrô, tendo somente 20
minutos para recuperá-la, já que pertence a um perigoso contrabandista
para o qual ele está trabalhando. Desesperado, liga para sua namorada,
Lola, que sai correndo pelas ruas para ajudá-lo.
Quando o filme foi lançado, além de todo o visual clubber da
personagem, ainda contou com a música techno, que inclusive foi gravada
pela intérprete de Lola, Franka Potente. Ele chamou atenção por mostrar
três desfechos diferentes para os personagens, possibilitando uma série
de interpretações por parte de quem assiste. Com essa descrição, o filme
parece ser voltado para intelectuais, difícil e tudo mais. Mas não! É
bem divertido de ser assistido e tem boas doses de ação.
O interessante é que, ao longo dos três desfechos, são mostradas as
conseqüências de pequenos atos de Lola às pessoas a sua volta. Se ela
chega um segundo mais cedo em um local, isso muda toda a vida de várias
personagens. É como se cada ato pequeno, minúsculo e simples de nosso
dia a dia tivesse conseqüências gigantescas na vida de todos a nossa
volta. Daí surge a questão: seríamos responsáveis pelas conseqüências
destes pequenos atos? Será que nossa liberdade de agir implica na
responsabilidade por estes atos? Parece ser a linha de pensamento
desenvolvida pelo filme.
Jean-Paul Sartre (1905-1980), filósofo francês do século XX, pai do
Existencialismo, propõe uma leitura do ser humano partindo de Heidegger,
Husserl, Hegel, entre outros: o ser humano como um nada que se projeta
no mundo. O autor propõe que não há nada que nos pré-determine, como um
Deus criador, destino, inconsciente, nosso corpo, ou qualquer outra
coisa. Para Sartre, somos tão livres que, mesmo que o meio em que
nascemos nos leve a uma trajetória existencial, somos nós que escolhemos
trilhá-la ou não. Isso faz com que sejamos completamente responsáveis
por nós mesmos em todos os aspectos de nossa existência.
Poderíamos perguntar ao autor: e naqueles momentos em que não
decidimos, simplesmente deixamos as coisas seguirem? Ele nos
responderia: não decidir já é uma escolha, portanto você é plenamente
responsável por ela e por todas as suas conseqüências. Ao tratar, por
exemplo, de uma pessoa covarde, ele diria que ela é covarde por escolher
ser assim. Não foi o meio, os pais, o corpo, a sociedade, ou o que mais
seja, que o tornou o que ele é. Você só é um covarde por escolher ser
um covarde.
É dentro desta perspectiva, de que somos seres vazios que passamos a
existir, e então nos projetamos através de nossas escolhas existenciais,
que surge sua famosa frase: “A existência precede a existência”. Isso quer dizer que primeiro surgimos no mundo, depois definimos aquilo que realmente somos. O que vai implicar em “o homem está condenado a ser livre”,
já que não há meios de se fugir dessa liberdade. Isso levou o autor a
compreender a existência como angústia, por sermos fadados a liberdade, e
como a náusea, que é a sensação advinda dessa liberdade e
responsabilidade existencial.
Sartre foi criticado com o argumento de que, se somos fadados a
sermos livres, sendo de nossa própria responsabilidade cada um de nossos
atos, não haveria responsabilidade nas relações com outros humanos.
Seria como projetar a existência tendo somente o horizonte da própria
individualidade, desconsiderando os outros indivíduos. Sartre nega esse
argumento: “quando dizemos que o homem é responsável por si próprio,
não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita
individualidade, mas é responsável por todos os homens”. Como
nossas escolhas refletem-se nos outros, ou por incluí-los, ou pelo fato
de estarmos todos inseridos num mundo comum, então somos condenados a
assumir a responsabilidade por cada uma de nossas escolhas, das menores
às mais complexas.
Pensemos em algo simples, como a relação de um casal dentro da
perspectiva de Sartre. São as grandes escolhas e atos que determinam o
caminhar da relação, ou são as pequenas coisas do dia a dia que vão
acumulando-se e gerando a própria relação? O conflito de casais não
advém da responsabilidade individual de cada pequena ação, como um
gesto, um olhar, uma palavra, e cada um é plenamente responsável por
ele? Não é essa tônica que encaminha uma discussão em casal? Por estas e
outras coisas que a perspectiva sartreana o levará a dizer que o “inferno são os outros”, já que o peso de nossa responsabilidade com o outro é angustiante e nauseante.
Imaginemos nossa responsabilidade individual num esbarrão ao caminhar
ou uma distração causada à outra pessoa. O que isso pode gerar na vida
do outro? O filme trabalha com essa perspectiva sem a angústia nauseante
com que Sartre trata do tema, mas permite-nos refletir o quanto cada
pequeno ato nosso influi no mundo, e sobre nossa responsabilidade sobre
esse ato. Apesar de não ser exatamente sartreano, ele nos permite
compreender melhor a maneira como Sartre vê a responsabilidade
individual e a relação com os outros. Recomendo assisti-lo, se divertir e
depois refletir um pouco.
Fontes de aprofundamento
O Existencialismo é um Humanismo, Jean-Paul Sartre.
Publicado originalmente em: http://randomcast.com.br/nerdices-filosoficas-corra-lola-corra-e-o-existencialismo/
© 2013 Tiago de Lima Castro
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