Nerdices Filosóficas – Doctor Who: A oitava temporada como Dialética entre duas eras


About time … Peter Capaldi as Doctor Who and Jenna Coleman as Clara.

Após a última temporada de Doctor Who vemos o quanto essa temporada tem tem gerado opiniões diferentes, o que é bem interessante. Este texto é uma continuação do texto anterior sobre Doctor Who, e trabalha com a ideia de analisar as regenerações por via da dialética hegeliana. Se ainda não assistiu aos episódios, não recomendo a leitura desse texto.

Uma maneira de ler essa temporada é como uma tentativa de uma síntese dialética entre a série clássica e a série atual, tendo estas duas fases enquanto diferentes aspectos do Doutor, tendo na Time War o ponto de mudança. Por mais que certas diferenças existam devido a escolhas de produção, mudanças de equipe, vamos analisar a trajetória do personagem em sua própria imanência, ou seja, tendo toda a série como um personagem mutável no decorrer de sua temporalidade, assim como cada um de nós.


Hegel_038Hegel compreende a dialética enquanto um movimento interno de constituição através de constantes negações de si mesmo. Ele utiliza o exemplo do botão de flor que desaparece quando a flor emerge do próprio botão, de maneira que a flor nega, e mesmo destrói, o botão para o surgimento da flor. Este é um primeiro momento da dialética, a negação de si mesmo. Posteriormente, a flor dará origem ao fruto, novamente, o fruto nega e destrói a flor para seu surgimento, sendo o segundo movimento da dialética, a negação da negação. De certa forma, quando o fruto nega a flor, ele reafirma o botão original, mas este movimento não termina aqui, já que o fruto que não é o momento final, e sim parte de um contínuo ciclo de afirmação, negação e negação da negação, ou em termos mais didáticos: tese, antítese e síntese.
Pensemos agora nas duas fases da série enquanto diferentes momentos do personagem e a oitava temporada como uma síntese dialética de ambos os momentos apontando a novas fases.

Série clássica

O personagem começa após tornar-se um renegado, algo não ainda explicado – apesar de haver propostas no universo expandido, é difícil saber o que vai ser negado ou afirmado pela série. Entretanto, ninguém foge com a neta em uma Tardis sem uma grande motivação.

ClaraEm Listen, vislumbramos parte desse passado, com o Doutor na infância não querendo ser um soldado, algo que parece ser essencial para tornar-se um Time Lord. Vemos o Doutor fugindo de Gallifrey ou mostrando seus problemas com as leis de Gallifrey por toda a série, seja com o Segundo sendo obrigado a regenerar e fazer aquele discurso incrível; o Terceiro estando exilado a não ser quando convém a Gallifrey; o Quarto sendo lembrado de ser um mau aluno na Academia; o Quinto fugindo de ser presidente; o Sexto sendo julgado com um enfático discurso sobre Gallifrey estar estacionado; o Sétimo salvando-os mas tratando de esconder uma arma do Ômega e depois sendo obrigado a levar os restos do Mestre e acabando regenerando no Oitavo.

Em toda essa fase fica evidente como o Doutor discorda de seu povo, com suas leis de não-interferência, posto que ficar impassível perante uma tragédia é ser partícipe desta. Sua existência é talvez uma tentativa de negar em si mesmo todo modo de ser de um Senhor do Tempo. O próprio termo Senhor do Tempo só aparece quando o Mestre aparece na época do Terceiro Doutor, ou seja, o próprio Doutor nega esse título ao não mencioná-lo.

genesis-of-the-daleks3Simultaneamente, existe uma complexa relação entre o Doutor e os Daleks, o primeiro monstro que ele encontra na série, o qual é uma representação dos ideais nazistas de raça puro, extermínio de raças inferiores e totalitarismo. Enquanto o Doutor convive com seres diferentes, mesmo no início com uma certa empáfia que vai se modificando ao longo das regenerações, ele é o contrário dos Daleks, já que respeita outros seres, abraçando a mudança e a diversidade como elementos essenciais.

Um dos pontos mais dramáticos é quando os Time Lords o enviam para realizar um genocídio dos Daleks, aproximando-os do totalitarismo e valores dos próprios Daleks. O Doutor acaba escolhendo pela vida, num dos momentos mais belos de toda série, porém, gerando dramáticas consequências futuras. Talvez, o plano dos Time Lords também fossem eliminar o Doutor junto, já que ele realizando o genocídio dos Daleks destrói toda sua linha temporal pela quantidade de embates que ambos tiveram.

A Time War

paul-mcgann-night-of-the-doctor-3-1024x662Neste momento, onde o Oitavo regenera-se no War Doctor, temos a grande mudança no personagem, já que este mesmo salvando Gallifrey, pensa ter feito o genocídio de duas espécies diferentes, a sua e a dos Daleks.

Por que tamanho peso perante o Doutor?

War-Doctor-No-MoreSobre os Daleks, sabemos a possibilidade dele ter feito o genocídio antes, que acabou fazendo agora. Qual o peso de pensar que toda Time War é devido a uma escolha feita pela vida? Como lidar com o fato de ao escolher a vida, gerou toda uma guerra posteriormente?

Sobre seu povo, vemos que ao usar o Momento, somente refletiu sobre o que faria ao ser lembrado das crianças, seres de imensa potencialidade devido a toda sua trajetória estar em branco ainda. Não são seus parentes, seus costumes e toda sua cultura que faz o Doutor parar a pensar, e sim as crianças. Qual o peso de tantas crianças exterminadas ao parar uma guerra que destruiria todo o Universo? E mais, como não lembra de todos os eventos do uso do Momento, significa que não lembra também de sua reflexão provavelmente, de maneira que a dúvida se aceitou exterminar seu povo foi não haver mais opções ou somente fora o ato final de negar toda a cultura Time Lord? O quanto, talvez ela sinta, o extermínio do seu povo não foi uma forma de livrar-se daquele que ele tanto odeia: ser um Time Lord?

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A série atual

1920x1080_rose-tyler-tardis-doctor-who-ninth-HD-WallpaperO Nono Doutor ao relacionar-se com a Rose, vai recuperando o desejo pela vida, de certa forma, negando tudo o que ele foi no passado. Seu modo, suas vestimentas e mesmo sua Tardis, é uma amostra disso tudo.
David-Tennant-Matt-Smith-Day-of-the-Doctor-WhoComo Décimo, fora chamado daquele que lamenta; e o Décimo Primeiro, aquele que esquece. Vejamos que ambas são aprofundamentos dessa postura de negar tudo aqui oque você foi e, no fundo, odeia. Quantas vezes na Série Atual vemos o Doutor afirmando seu ódio por si mesmo? Todas as mudanças de comportamento nessa fase mostram essa busca de autonegação.

Nos episódios finais da sétima temporada, vemos que ele se reconcilia com seu passado, ao descobrir que salvou Gallifrey. Além disso, o Décimo Primeiro passou anos em Trenzalore reassumindo antigos trejeitos, ou seja, reconhecendo a si mesmo neste processo de reafirmação de seu passado. Porém, o faz na postura de quem busca reconciliar-se consigo mesmo antes da morte, por não saber que conseguiria sobreviver com os Time Lords, provavelmente seu mais antigo inimigo, fornecem-lhe novas regenerações e assim emerge a Oitava Temporada.
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Oitava Temporada

Décimo terceiro Doctor (Peter Capaldi)
Nesta vemos uma grande mudança no personagem, assumindo novamente seu aspecto alienígena em sua busca pro si mesmo. Vemos que até meio da temporada, ele não se afirmou como Doutor que maneira drástica, mas está mais rude e mais direto.

Depois de ficar grande parte de sua vida negando a si mesmo devido a Time War, nada mais natural do que negar esse momento de negação reafirmando sua fase anterior de uma forma mais acabada, com tudo o que ele passou. É como se ele sintetizasse tudo o que passou na era clássica e na atual buscando uma nova forma de ser para continuar a partir daqui.

Todo o questionamento de quem ele é vêm daí, afinal, agora basta somente aceitar o que fez no passado, mas efetivamente criar uma nova versão de si mesmo exteriorizando tudo o que viveu em ambas as fases. O tempo que o personagem demora para ver a si mesmo, vêm daí.

Neste ponto de vista, vemos toda a trajetória da temporada, em seu reencontro com Daleks, medos de infância, com antigos herois, com a própria natureza, entre outros; essa constante busca para o personagem saber o que ele fará daqui para frente. A presença de uma companion forte, extremamente controladora e inteligente mostrando-o o quanto uma vida dupla é impossível, já que ela pareceu manter essa duplicidade não por ser independente do Doutor, mas também por não se encontrar totalmente numa vida ou em outra, ela também tem uma duplicidade em si mesma similar ao Doutor.

Ele é mais rude por ser transparente, não tentando esconder seu peso interno com um grande sorriso e aparente alegria. Ele é rude, transparente e direto com os demais por quer o ser consigo mesmo.

Muitos tem estranhado o porquê dele não buscar Gallifrey nessa temporada, o que vemos que não é bem assim no último episódio. Não obstante, como ir atrás de Gallifrey após negar por tanto tempo a cultura de Gallifrey na qual ele foi criado e, pelo que tudo indica, sofreu ao ponto de fugir com sua neta? Podemos interpretar que toda essa busca por si mesmo é a única forma dele realmente poder buscar Gallifrey depois, já que ao encontrá-la irá deparar-se com tudo que tem fugido desde o início da série e, provavelmente, antes como a série tem indicado ao longo das duas eras.

tumblr_inline_nf26goYVbp1r93v55É incrível como ao final da temporada ele descreve a si mesmo:

I am not a good man! And I’m not a bad man. I am not a hero. I’m definitely not a president. And no, I’m not an officer. You know what I am? I… am… an idiot. With a box and a screwdriver, passing through, helping out, learning.

Ele assume mesmo não como alguém fixo, estático, mas em contínuo movimento de auto-constituição de si mesmo.

Conclusão

Toda essa temporada fora esse movimento do reencontro de si mesmo do Doutor, assimilando todas suas eras anteriores para a constituição de outro momento, de outro movimento que veremos na nova temporada.
Muitos argumentam que isso foi longo demais, porém como realizar essa síntese de si mesmo de maneira rápida e fácil? Realizar um processo de elaboração de seus traumas de maneira a constituir um novo si mesmo para continuar esse processo de mudança e transformação – que é o próprio viver, é algo tão rápido assim?

Esse Doutor não teve um simples processo de descobrir sua nova personalidade, mas sintetizar essa nova personalidade com a elaboração de tudo que fora anteriormente, algo ainda não visto na série em nenhum Doutor, já que agora não tivemos a personalidade atual em jogo, e sim o Doutor em todas suas faces aceitando e perdoando a si mesmo neste reconhecimento de si para a continuação de sua jornada.

A Clara fora um espelho extramente interessante nessa jornada. Ainda temos o especial de Natal, porém, rever essa temporada como esse processo de reafirmação de si mesmo numa síntese dialética de todo seu ser pode ser algo bem interessante para apreender essa temporada e aguardar a próxima.

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Referências

Fenomenologia do Espírito, Hegel
Outros textos sobre Doctor Who


© 2014 Tiago de Lima Castro

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