Nerdices Filosóficas – Doctor Who: A oitava temporada como Dialética entre duas eras
Após a última temporada de Doctor Who
vemos o quanto essa temporada tem tem gerado opiniões diferentes, o que é
bem interessante. Este texto é uma continuação do texto anterior sobre Doctor Who, e trabalha com a ideia de analisar as regenerações por via da dialética hegeliana. Se ainda não assistiu aos episódios, não recomendo a leitura desse texto.
Uma maneira de ler essa temporada é como
uma tentativa de uma síntese dialética entre a série clássica e a série
atual, tendo estas duas fases enquanto diferentes aspectos do Doutor,
tendo na Time War o ponto de mudança. Por mais que certas diferenças
existam devido a escolhas de produção, mudanças de equipe, vamos
analisar a trajetória do personagem em sua própria imanência, ou seja,
tendo toda a série como um personagem mutável no decorrer de sua
temporalidade, assim como cada um de nós.
Hegel
compreende a dialética enquanto um movimento interno de constituição
através de constantes negações de si mesmo. Ele utiliza o exemplo do
botão de flor que desaparece quando a flor emerge do próprio botão, de
maneira que a flor nega, e mesmo destrói, o botão para o surgimento da
flor. Este é um primeiro momento da dialética, a negação de si mesmo.
Posteriormente, a flor dará origem ao fruto, novamente, o fruto nega e
destrói a flor para seu surgimento, sendo o segundo movimento da
dialética, a negação da negação. De certa forma, quando o fruto nega a
flor, ele reafirma o botão original, mas este movimento não termina
aqui, já que o fruto que não é o momento final, e sim parte de um
contínuo ciclo de afirmação, negação e negação da negação, ou em termos
mais didáticos: tese, antítese e síntese.
Pensemos agora nas duas fases da série
enquanto diferentes momentos do personagem e a oitava temporada como uma
síntese dialética de ambos os momentos apontando a novas fases.
Série clássica
O personagem começa após tornar-se um
renegado, algo não ainda explicado – apesar de haver propostas no
universo expandido, é difícil saber o que vai ser negado ou afirmado
pela série. Entretanto, ninguém foge com a neta em uma Tardis sem uma
grande motivação.
Em Listen,
vislumbramos parte desse passado, com o Doutor na infância não querendo
ser um soldado, algo que parece ser essencial para tornar-se um Time
Lord. Vemos o Doutor fugindo de Gallifrey ou mostrando seus problemas
com as leis de Gallifrey por toda a série, seja com o Segundo sendo
obrigado a regenerar e fazer aquele discurso incrível; o Terceiro
estando exilado a não ser quando convém a Gallifrey; o Quarto sendo
lembrado de ser um mau aluno na Academia; o Quinto fugindo de ser
presidente; o Sexto sendo julgado com um enfático discurso sobre
Gallifrey estar estacionado; o Sétimo salvando-os mas tratando de
esconder uma arma do Ômega e depois sendo obrigado a levar os restos do
Mestre e acabando regenerando no Oitavo.
Em toda essa fase fica evidente como o
Doutor discorda de seu povo, com suas leis de não-interferência, posto
que ficar impassível perante uma tragédia é ser partícipe desta. Sua
existência é talvez uma tentativa de negar em si mesmo todo modo de ser
de um Senhor do Tempo. O próprio termo Senhor do Tempo só aparece quando
o Mestre aparece na época do Terceiro Doutor, ou seja, o próprio Doutor
nega esse título ao não mencioná-lo.
Simultaneamente,
existe uma complexa relação entre o Doutor e os Daleks, o primeiro
monstro que ele encontra na série, o qual é uma representação dos ideais
nazistas de raça puro, extermínio de raças inferiores e totalitarismo.
Enquanto o Doutor convive com seres diferentes, mesmo no início com uma
certa empáfia que vai se modificando ao longo das regenerações, ele é o
contrário dos Daleks, já que respeita outros seres, abraçando a mudança e
a diversidade como elementos essenciais.
Um dos pontos mais dramáticos é quando os
Time Lords o enviam para realizar um genocídio dos Daleks,
aproximando-os do totalitarismo e valores dos próprios Daleks. O Doutor
acaba escolhendo pela vida, num dos momentos mais belos de toda série,
porém, gerando dramáticas consequências futuras. Talvez, o plano dos
Time Lords também fossem eliminar o Doutor junto, já que ele realizando o
genocídio dos Daleks destrói toda sua linha temporal pela quantidade de
embates que ambos tiveram.
A Time War
Neste
momento, onde o Oitavo regenera-se no War Doctor, temos a grande
mudança no personagem, já que este mesmo salvando Gallifrey, pensa ter
feito o genocídio de duas espécies diferentes, a sua e a dos Daleks.
Por que tamanho peso perante o Doutor?
Sobre
os Daleks, sabemos a possibilidade dele ter feito o genocídio antes,
que acabou fazendo agora. Qual o peso de pensar que toda Time War é
devido a uma escolha feita pela vida? Como lidar com o fato de ao
escolher a vida, gerou toda uma guerra posteriormente?
Sobre seu povo, vemos que ao usar o
Momento, somente refletiu sobre o que faria ao ser lembrado das
crianças, seres de imensa potencialidade devido a toda sua trajetória
estar em branco ainda. Não são seus parentes, seus costumes e toda sua
cultura que faz o Doutor parar a pensar, e sim as crianças. Qual o peso
de tantas crianças exterminadas ao parar uma guerra que destruiria todo o
Universo? E mais, como não lembra de todos os eventos do uso do
Momento, significa que não lembra também de sua reflexão provavelmente,
de maneira que a dúvida se aceitou exterminar seu povo foi não haver
mais opções ou somente fora o ato final de negar toda a cultura Time
Lord? O quanto, talvez ela sinta, o extermínio do seu povo não foi uma
forma de livrar-se daquele que ele tanto odeia: ser um Time Lord?
A série atual
O
Nono Doutor ao relacionar-se com a Rose, vai recuperando o desejo pela
vida, de certa forma, negando tudo o que ele foi no passado. Seu modo,
suas vestimentas e mesmo sua Tardis, é uma amostra disso tudo.
Como
Décimo, fora chamado daquele que lamenta; e o Décimo Primeiro, aquele
que esquece. Vejamos que ambas são aprofundamentos dessa postura de
negar tudo aqui oque você foi e, no fundo, odeia. Quantas vezes na Série
Atual vemos o Doutor afirmando seu ódio por si mesmo? Todas as mudanças
de comportamento nessa fase mostram essa busca de autonegação.
Nos episódios finais da sétima temporada,
vemos que ele se reconcilia com seu passado, ao descobrir que salvou
Gallifrey. Além disso, o Décimo Primeiro passou anos em Trenzalore
reassumindo antigos trejeitos, ou seja, reconhecendo a si mesmo neste
processo de reafirmação de seu passado. Porém, o faz na postura de quem
busca reconciliar-se consigo mesmo antes da morte, por não saber que
conseguiria sobreviver com os Time Lords, provavelmente seu mais antigo
inimigo, fornecem-lhe novas regenerações e assim emerge a Oitava
Temporada.
Oitava Temporada
Nesta vemos uma grande mudança no
personagem, assumindo novamente seu aspecto alienígena em sua busca pro
si mesmo. Vemos que até meio da temporada, ele não se afirmou como
Doutor que maneira drástica, mas está mais rude e mais direto.
Depois de ficar grande parte de sua vida
negando a si mesmo devido a Time War, nada mais natural do que negar
esse momento de negação reafirmando sua fase anterior de uma forma mais
acabada, com tudo o que ele passou. É como se ele sintetizasse tudo o
que passou na era clássica e na atual buscando uma nova forma de ser
para continuar a partir daqui.
Todo o questionamento de quem ele é vêm
daí, afinal, agora basta somente aceitar o que fez no passado, mas
efetivamente criar uma nova versão de si mesmo exteriorizando tudo o que
viveu em ambas as fases. O tempo que o personagem demora para ver a si
mesmo, vêm daí.
Neste ponto de vista, vemos toda a
trajetória da temporada, em seu reencontro com Daleks, medos de
infância, com antigos herois, com a própria natureza, entre outros; essa
constante busca para o personagem saber o que ele fará daqui para
frente. A presença de uma companion forte, extremamente controladora e
inteligente mostrando-o o quanto uma vida dupla é impossível, já que ela
pareceu manter essa duplicidade não por ser independente do Doutor, mas
também por não se encontrar totalmente numa vida ou em outra, ela
também tem uma duplicidade em si mesma similar ao Doutor.
Ele é mais rude por ser transparente, não
tentando esconder seu peso interno com um grande sorriso e aparente
alegria. Ele é rude, transparente e direto com os demais por quer o ser
consigo mesmo.
Muitos tem estranhado o porquê dele não
buscar Gallifrey nessa temporada, o que vemos que não é bem assim no
último episódio. Não obstante, como ir atrás de Gallifrey após negar por
tanto tempo a cultura de Gallifrey na qual ele foi criado e, pelo que
tudo indica, sofreu ao ponto de fugir com sua neta? Podemos interpretar
que toda essa busca por si mesmo é a única forma dele realmente poder
buscar Gallifrey depois, já que ao encontrá-la irá deparar-se com tudo
que tem fugido desde o início da série e, provavelmente, antes como a
série tem indicado ao longo das duas eras.
I am not a good man! And I’m not a bad
man. I am not a hero. I’m definitely not a president. And no, I’m not
an officer. You know what I am? I… am… an idiot. With a box and a
screwdriver, passing through, helping out, learning.
Ele assume mesmo não como alguém fixo, estático, mas em contínuo movimento de auto-constituição de si mesmo.
Conclusão
Toda essa temporada fora esse movimento
do reencontro de si mesmo do Doutor, assimilando todas suas eras
anteriores para a constituição de outro momento, de outro movimento que
veremos na nova temporada.
Muitos argumentam que isso foi longo
demais, porém como realizar essa síntese de si mesmo de maneira rápida e
fácil? Realizar um processo de elaboração de seus traumas de maneira a
constituir um novo si mesmo para continuar esse processo de mudança e
transformação – que é o próprio viver, é algo tão rápido assim?
Esse Doutor não teve um simples processo
de descobrir sua nova personalidade, mas sintetizar essa nova
personalidade com a elaboração de tudo que fora anteriormente, algo
ainda não visto na série em nenhum Doutor, já que agora não tivemos a
personalidade atual em jogo, e sim o Doutor em todas suas faces
aceitando e perdoando a si mesmo neste reconhecimento de si para a
continuação de sua jornada.
A Clara fora um espelho extramente
interessante nessa jornada. Ainda temos o especial de Natal, porém,
rever essa temporada como esse processo de reafirmação de si mesmo numa
síntese dialética de todo seu ser pode ser algo bem interessante para
apreender essa temporada e aguardar a próxima.
Referências
Fenomenologia do Espírito, Hegel
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© 2014 Tiago de Lima Castro
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