Dr. Who – O Novo Ciclo de Regenerações: Uma interpretação
Após todos os especiais do final do ano
passado, um novo Doctor foi apresentado junto com revelações e mudanças
prometidas. Podemos refletir em como todo esse processo vai implicar na
personalidade do novo Doctor, já que a série tem o paradoxo de que o
Doctor é um e múltiplo simultaneamente. E até onde nós também o somos…
Para esta interpretação, seria interessante ler dois textos publicados anteriormente: um discutindo sobre a imagem de si e a memória; e outro sobre a dialética no processo de regeneração. Eles formam uma certa base teórica desta discussão.
Série Clássica
Doctor (William Hartnell) com sua neta e seus companions. |
O primeiro Doctor (William Hartnell) tem
um certo mistério que o envolve: Por que um avô fugiria de Gallifrey com
sua neta na Tardis viajando pelo tempo e espaço? O universo expandido
trouxe elementos que explicariam, porém, esta é uma questão ainda e
aberto – o universo expandido é bem amplo e nunca sabemos o quanto a
série de televisão o confirmará ou negará, daí o texto trabalha com o
que foi exibido na série de televisão… Entretanto, isso indica que ele
não concordava com aspectos de sua civilização, a ponto de afastar sua
neta de lá. Pelas suas ações, percebemos que uma de suas desconfianças
era da lei de não interferir no tempo, para manter sua estrutura, mesmo
que vidas possam sofrer com isso. Ele tem uma personalidade forte de
alguém sábio e, mesmo, um tanto arrogante por ser um Senhor do Tempo.
Susan Foreman (Carole Ann Ford) – Neta do Doctor |
Segundo Doctor (Patrick Troughton) |
Com o segundo Doctor (Patrick Troughton),
temos alguém mais atrapalhado e aparentemente covarde, mas isso é uma
aparência, já que adversários e aliados têm dificuldade de entender o
que ele planeja e está fazendo. Porém, está mais integrado aos humanos,
algo que sua versão anterior foi conquistando aos poucos. Ao final,
necessitou da ajuda de Gallifrey, sendo em seguida julgado por
desobedecer a lei da não-interferência, no qual ele enfrenta-os dizendo
que deveriam ajudar as pessoas com a viagem no tempo e não ficar
indiferente a seus sofrimentos. Neste momento vislumbramos o tamanho da
discordância do personagem com a cultura de Gallifrey e sua coragem no
discurso. Como punição, ele é exilado na Terra no século XX, sem poder
viajar no tempo e sendo obrigado a regenerar, não gostando do rosto
escolhido pelos juízes…
Terceiro Doctor (Jon Pertwee) |
Temos o terceiro Doctor (Jon Pertwee), o
qual tornou-se um defensor da Terra contra alienígenas. Em seu exílio,
passa a trabalhar para Unit. Quando Ômega, um importantíssimo Time Lord
do passado, passa a ameaçar a existência de Gallifrey, pedem ajuda a
este – isso ocorre no especial The Three Doctors. Ajudar quem
te exiliou não é das tarefas mais fáceis, ainda mais com a desconfiança
do que Gallifrey fará após sua ação. Mas ele aceita e vai necessitar da
ajuda de suas duas encarnações anteriores para vencer Ômega. Nesse
processo, metaforicamente, de aceitar ajuda de suas encarnações
anteriores é como um processo de reconhecer a si mesmo em seus outros
“eus”, num processo de transcendência ao aceitar que sua consciência,
enquanto a duração bergsoniana, ou seja, um fluxo sempre movente. Ao
salvar Gallifrey, volta a poder viajar no tempo, recebendo o perdão de
Gallifrey, mas vemos a ênfase do personagem em retornar a Terra como
ainda uma certa desconfiança em relação a seu povo. Posteriormente, ele
também acaba regenerando…
Quatro Doctor (Tom Baker) |
Surge o quarto Doctor (Tom Baker), o qual
vai afastando-se da Unit, preferindo viajar pelo tempo e espaço.
Podemos compreender esse afastamento ou pelo desejo de viagens ou mesmo
uma desconfiança, afinal, mesmo ele confiando no Brigadeiro, são
militares que obedecem a superiores. Quem garante que no futuro não
esqueceram a ética em prol de algum objetivo? Sendo a encarnação mais
longeva na série, vemos que sua desconfiança em relação a Gallifrey
continua. Esta encarnação é a das mais enigmáticas até agora, tendo
características das demais, mas nunca deixando claro o que está
pensando… Mesmo sendo das mais amadas encarnações da série, tudo tem um
final e acaba, mas ao mesmo tempo continua…
Quinto Doctor (Peter Davison) |
O quinto Doctor (Peter Davison) teve uma
regeneração complicada e das mais estranhas, com a presença de uma
estranha figura: o Watcher (observador). Tinha uma característica de
aparentar ser mais indeciso que suas encarnações anteriores, tendo uma
aparência mais jovem e, ao mesmo, um pouco mais humanizado. Mesmo
mostrando-se indeciso, ainda é o Doctor. Talvez, possamos compreender
como um processo de amadurecimento, já que este percebe limitações em si
mesmo, sendo a dificuldade de decidir como uma maior percepção do
alcance de suas ações. Durante suas aventuras, houve inclusive mortes de
companions… Em meio a isso tudo, ele acaba tendo que lidar com suas
encarnações anteriores, no especial The Five Doctors, onde a
princípio ele aparenta ser muito mais inseguro e indeciso em relação aos
anteriores, entretanto, o mistério desvenda-se graças a sua
desconfiança sobre tudo o que está acontecendo, ou seja, o que parece
ser uma fraqueza pode ser visto como um aumento de maturidade e reserva,
mas ao mesmo tempo, novamente vemos a necessidade do personagem de
entrar em paz consigo mesmo, unindo-se aos seus demais “eus” para
transcender aquela situação. Posteriormente, sacrifica-se para salvar
sua companion ele regenera.
Sexto Doctor (Collin Baker) |
Surge o sexto Doctor (Collin Baker), o
qual teve uma regeneração bem complicada… Vemos um Doctor mais
arrogante, o qual simplesmente fala o que pensa e bem confiante em si
mesmo. Há um contraste com o anterior, porém, este ainda é o Doctor, mas
pragmático e confiante. Essa face mais agressiva não deixa de ser um
aspecto sempre presente na personalidade dele, não deixando de ser uma
forma de lidar com a adversidade. Este é levado a julgamento pelos Time
Lords, novamente por interferir no curso do tempo, sendo acusado de suas
ações levarem a morte de outras pessoas.
Valeyard (Michael Jayston) |
Entretanto, tudo era uma manipulação do
Valeyard, uma amálgama de seu lado negro surgido, provavelmente, entre a
décima-segunda e a última, pelo que foi dito pelo Master. Aqui surgem
questões: Seria possível no futuro o Doctor tornar-se mal? Por que o
Valeyard seria uma amálgama do lado negro de suas encarnações, e não uma
encarnação específica? Por que roubar as futuras regenerações restantes
exatamente da sexta encarnação eliminando as que ocorrem antes de seu
surgimento? Justamente quando o Doctor mostra uma face mais agressiva vê
a possibilidade de ser dominado por essa face. Em Doctor Who, o
tempo não é exatamente contínuo, daí não podemos afirmar que
necessariamente o Valeyard existirá ou não, já que uma de suas
principais características narrativas da série é abraçar os paradoxos
temporais. O Valeyard não morre e não tendo um fim claro, pelo menos na
série televisiva. Porém, em uma situação não bem esclarecidas, motivadas
por questões internas a produção da série, ele tornar-se sua próxima
encarnação.
Sétimo Doctor (Sylvester McCoy) |
O sétimo Doctor (Sylvester McCoy) surgiu
de uma maneira um pouco estranha, como dito acima. Contudo, nunca uma
encarnação foi tão dúbia, já que este tem uma grande capacidade de criar
planos, dando pouquíssimas informações aos seus companions, parecendo
mesmo flertar com um lado negro, mas ao final, tudo era parte do plano,
mesmo que este seja um tanto quando dúbio moralmente. Concomitantemente,
ele não utiliza armas de fogo e é contra o uso de violência, o que
difere de suas encarnações anteriores. Mas ao lembrarmos de que em sua
encarnação anterior viu a súmula de sua sombra, de seu lado negro,
encarnado; tomar uma postura de antiviolência não deixa de ser uma forma
de lidar com o receio do que pode tornar-se, ao mesmo tempo em que esse
lado negro ainda apresenta-se na dubiedade de alguns planos e algumas
ações. Ainda o grande problema com Gallifrey, inclusive por ter Rani e o
Master, ambos também de Gallifrey, como antagonistas. Essa ambiguidade
presente, na qual a expressão Doctor Who (Doutor Quem?) se
torna a própria expressão de sua personalidade, como nunca antes fora;
ao mesmo tempo em que parece buscar criar condições em si mesmo para que
o Valeyard não surja, de certa maneira.
Período do filme e da Guerra do Tempo
Oitavo Doctor (Paul McGann) |
Vemos a regeneração para oitavo Doctor
(Paul McGann) somente no filme. Devido a uma anestesia, ele quase morre
no processo de regeneração, tendo amnésia e certa confusão mental. Tem
uma personalidade amorosa e determinada, porém, quando a tensão aumenta
começa a falar bem rápido e de maneira extremamente sarcástica. Nesta
encarnação, começa a Guerra do Tempo (Time War), a qual ainda está
envolta em mistérios. Primeiro ele escolhe não participar da Guerra,
talvez ainda tenha medo que seu lado negro manifeste-se em meio à
guerra? Até onde escolher não participar da guerra é escolher não estar
junto com o Alto Conselho de Gallifrey, como sempre fez? Porém, escolher
não interferir gera consequências, nas quais múltiplos planetas ao
longo do espaço e tempo sofrem devido a guerra. Ao presenciar uma morte,
devido a uma nave cair e ele não ter salvo a piloto pelo medo dele ser
um Time Lord, leva-o a decidir tornar-se um guerreiro em sua próxima
encarnação, graças a Irmandade de Karn.
War Doctor (John Hurt) |
O War Doctor (John Hurt) não aceitava a
si mesmo como um Doctor, devido aos atos realizados durante a guerra.
Ele que disparou o Momento, a mais terrível arma de Gallifrey, levando a
congelá-la em um universo paralelo, mesmo tendo ajuda de suas
encarnações futuras, não consegue lembrar-se do que ocorreu ao final,
pensando que matou a todos em Gallifrey.
Rose Tyler – Bad Wolf (Billie Piper) |
Por mais que essa encarnação foi
influenciada pela Irmandade de Karn, o quanto suas ações não são
consequências do lado negro que fora aflorando nas últimas encarnações?
Será que o medo do oitavo Doctor de entrar na guerra não era
compreensivo? Vemos que ele somente hesita em utilizar o Momento, quando
sua interface, na forma de “Rose Tyler – Bad Wolf” (Billie Piper),
pergunta-o quantas crianças existem em Gallifrey. O remorso é devido a
morte das crianças de Gallifrey, talvez os únicos inocentes ainda depois
da guerra, e não o Alto Conselho. Como não lembra de ter tentado salvo
Gallifrey, a culpa irá gerar um novo Doctor…
Série Atual
Nono Doctor (Christopher Eccleston) |
O nono Doctor (Christopher Eccleston) tem
uma aparência sóbria, buscando a todo custo evitar mortes, sendo que
seus planos são pensados para evitar isso. Vemos claramente alguém que
tem vergonha de seu passado, fugindo dele, o que pode ser visto na
própria vestimenta. Somente ao encontrar um Dalek vemos uma mudança e
ecos da dor de ver a si mesmo como quem matou todos de sua raça para
salvar o universo, revelar-se em violência. Graças a sua companion Rose
Tyler (Billie Piper), ele aprende a gostar de viver novamente, pois no
início vemos um Doctor que age somente como um processo de ver-se livre
da culpa, aos poucos recuperando o gosto pela vida. Talvez, o personagem
questione-se sobre o ato que finalizou a Guerra do Tempo seja devido a
não ter outra opção, ou ter sido uma reação ao seu problema com os Time
Lords. Para salvar Rose, após esta salvar sua vida – tanto fisicamente
como dando-lhe o gosto pela vida – surge um novo Doctor.
Décimo (David Tennant) |
O décimo (David Tennant) era extremamente
jovial, empolgado, arrogante, heroico e um pouco confuso em certos
momentos. Ele arrepende-se de seu passado, ainda buscando evitar que
qualquer um pereça, mas agindo de maneira viril quando acha ser
necessário. Ao longo do tempo, sua autoconfiança vai mostrando novamente
um certo lado negro emergir. Novamente a ambiguidade se faz presente,
pois este personagem tem um grande medo de mudar numa regeneração,
acidentalmente criando uma outra versão de si mesmo quando precisa
regenerar. Esse apego a si – de certa forma negando as encarnações
anteriores e não querendo ter outras – pode ser visto como medo do que
ele pode tornar-se. Ao final das contas, após mostrar um lado
controlador e arrogante perigoso, sacrifica-se levando-o a regeneração.
Décimo-primeiro Doctor (Matt Smith |
Temos o décimo primeiro Doctor (Matt
Smith), o qual tem como característica ser extremamente hiperativo,
lembrando o segundo em alguns momentos, alegre; contudo, parece sendo o
mais velho dos Doctors, basta vermos seus momentos de seriedade, do peso
pelo passado e ele esquecer-se de muita coisa, sendo que ao final vemos
que ele decidiu esquecer seu passado e apagar a si mesmo. Essa
ambiguidade de uma aparência jovial hiperativa com o peso demonstrado ao
longo da série, mostra-nos como o peso da Guerra do Tempo recai sobre
ele, lembrando que um lado negro começou a emergir antes desta, daí
podermos pensar o quanto o peso não advém da dúvida da origem de suas
ações na Guerra.
Este Doctor regenera-se após descobrir
que suas ações na Guerra não destruíram Gallifrey e após Trenzalore em
que ele envelheceu, ficando muito parecido com o primeiro Doctor. Vemos
neste episódio, exatamente aquele que esqueceu seu passado, envelhecer
assimilando tiques dos demais Doctors. Ao final, ganhando um novo ciclo
de regenerações justamente dos Time Lords de Gallifrey. De maneira que
primeiro ele, efetivamente, salva Gallifrey e os seus habitantes o
salvam.
Sobre o décimo segundo Doctor
Décimo segundo Doctor (Peter Capaldi) |
Ao pensar sobre todas as regenerações
anteriores, o décimo primeiro ter se ajustado com seu passado
naturalmente leva o próprio Doctor ser uma síntese dialética entre os
Doctors da série clássica antes, durante e após a Guerra do Tempo. Ele é
a mesma pessoa, agora, integrada novamente a si mesmo.
Todavia, ele ainda discorda das leis de
Gallifrey, e não sabemos o que Gallifrey pensa dele afinal. Por mais que
a culpa gerou um peso moral levando-o a afastar-se de si mesmo, em
certo sentido, agora não há mais um peso moral para pautar as suas
ações. Dessa maneira, o desafio dessa encarnação é assumir a si mesmo,
como parece que o personagem fará; o que pode iniciar de maneira um
pouco desequilibrada.
Considerações Finais
Estas são algumas reflexões e uma análise, como tal, sujeita a erros.
Além de discutir a série, a ideia fora
discutir através de Doctor Who, como o processo de conhecer a si mesmo
nos leva a deparar-nos com outros “eus”, com diversas imagens de si.
Somos um fluxo de duração, como diria Bergson, uma continuidade de
experiências que acumulam-se e interpenetram-se continuamente, porém, há
momentos em que tentamos estatizar imagens de si pela dificuldade de
lidar com nossas ações e suas consequências, daí impedindo-nos de lidar
com estas, devido a essa tentativa de estatizar e especializar “partes”
da duração em imagens estáticas.
O personagem tem nos ensinado como o
conhecer a nós mesmos necessita que aceitemos nosso passado, mesmo que
ao deparar-se com este vejamos uma outra versão de nós mesmos,
precisamos aceita-la, apreendendo e coincidindo com o fluxo que somos.
© 2014 Tiago de Lima Castro
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