Hannah Arendt: Os Riscos do Pensamento

Pensar é um ato solitário...
O filme Hannah Arendt (2012) não é uma biografia de toda a vida da filósofa alemã, porém aborda um momento específico de sua vida em que cobriu jornalisticamente o julgamento de Adolf Eichmann, tenente coronel da SS que fora o responsável da logística do holocausto promovido pelo Nazismo; em que escreveu a obra Eichmann em Jerusalém – Um relato da banalidade do mal (1963) e as consequências da publicação desta obra na revista The New Yorker. Há alguns flashbacks bem colocados para situar alguns elementos biográficos necessários a trama.



O filme foi dirigido por Margarethe von Trotta (1942-), importante cineasta do cinema novo alemão, a qual já havia tido o desafio de dirigir Rosa de Luxemburgo (1986) também sobre uma mulher destacada por seu pensamento e suas ações. Ambos os filmes, coincidentemente, foram estrelados por Barbara Sukowa.

Este filme apresenta grandes desafios à diretora: como falar de uma filósofa sem estereotipá-la como uma “deusa da razão”? Como não cair e mera biografia esquivando de sua produção filosófica? Como apresentar as ideias filosóficas com clareza e profundidade, porém sem ser chato ou exigir erudição por parte do espectador? Com fazer o expectador refletir através do filme não somente através dos diálogos?

Há uma frase dita por Martin Heidegger (1886-1976) que conduz toda a experiência que o proposta pelo filme: “pensar é um ato solitário...”. A filosofia de Heidegger influenciou o pensamento de Arendt por ter sido seu professor e depois amante, porém, Heidegger tornou-se membro do partido nazista. Por mais que essa relação não seja central no filme, os poucos momentos em que se aborda essa relação nos mostra a complexa relação dela com o trauma dele tornar-se nazista e mesmo assim, continuar a influenciando-a em suas relações. Essa solidão perante a ausência de seu antigo mestre e amor é mostrada de maneira sutil, porém efetiva.

Como judia alemã, acompanhar o julgamento de Eichmman naturalmente a faz rever seus traumas do nazismo, o que poderia levar a meramente externar todo o ódio por ele e pelo nazismo em suas análises, no entanto, enquanto filósofa ela necessita isolar-se dos próprios sentimentos e preconceitos para analisar friamente o que está sendo feito ali, o quê está sendo julgado efetivamente e qual a origem de todo mal efetuado por Eichmann e por outros nazistas. O filme nos faz sentir esse isolamento de si mesmo através da belíssima atuação de Sukowa e dos recursos cinematográficos utilizados.

Sentimos a solidão de Arendt ao ser atacada publicamente devido suas polêmicas conclusões filosóficas do julgamento, que deixou de ser mera narração jornalística do julgamento para uma reflexão sobre a origem do próprio mal. Para a filósofa, o mal efetivado por Eichmann e pelos nazistas, em sua maioria, não foi devido a um aspecto demoníaco ou monstruoso de suas personalidades, porém, surge do ato banal de meramente obedecer a ordens sem questioná-las... Não vou aprofundar a discussão sobre o conceito de banalidade do mal no filme, para não estragar a sua experiência com o filme.

Porém, ela não é somente atacada pela opinião pública, mas as pessoas mais próximas dela também a atacam. Além de isolar-se de seus anseios de punir Eichmann por seus crimes, a dor de sentir os mais próximos, intelectuais, membros da universidade que dá aulas, é extremamente intensa. O pensamento é solitário porque a filósofa a tornar-se solitária graças a ousadia de pensar aquilo que ninguém havia pensado, assustando a sociedade que a ataca pelo medo de pensar o novo. Somente em jovens alunos, além do marido e mais algumas poucas pessoas próximas que não deixam seu isolamento ser total.

A maneira como a personagem é apresentada é incrível, pois sentimos que a personagem é alguém de carne e osso que ousou pensar, e não uma deusa da razão acima das consequências de sua ousadia. O filme utiliza-se de cenas cotidianas dela com amigos, o marido, para mostrar a banalidade presente em sua vida, da mesma maneira que esta é presente em nossas próprias vidas. Inclusive, o filme não romantiza sua vida pessoal. A feminilidade de Arendt é mostrada em pequenos gestos de seu cotidiano, o que foi possível pela atuação de uma atriz experiência e pela condução da diretora. Ai está o encanto na feminilidade e banalidade de sua vida pessoal ao mesmo tempo em que empreende ousadas reflexões.

Sentimos os riscos intrínsecos do pensamento tanto a nossa própria interioridade, como na reação social sobre ele. Afinal, o movimento solitária de pensar, nesse diálogo consigo mesmo, pode nos levar a conclusões distante do que pensávamos antes, o que exige a coragem de isolar-se de seus preconceitos e, talvez, alguns sentimentos. Simultaneamente, o risco de sermos isolados e atacados socialmente por pensar diferente fica claro com o paradoxo que é a necessidade desse processo para não repetirmos os erros do passado.

Risco esse assumido pela diretora, afinal, falar nesse tema na Alemanha ainda não é fácil, inclusive pelo pensamento de Arendt colocar em cheque uma série de práticas cotidianas que, talvez, possam gerar terríveis situações como as provocadas pelo nazismo.

Outro grande acerto do filme é não impor o pensamento de Arendt aos expectadores, o qual é apresentado dentro das possibilidades que um filme tem de abordar conceitos, porém não demoniza quem discorda de suas conclusões. Isso permite que o filme acenda a chama da reflexão sem buscar converter ninguém. Ao conseguir esse equilíbrio, o filme leva os expectadores a saírem do cinema refletindo sobre ele, sobre as propostas de Arendt, sobre os argumentos contrários a sua proposta, a não aceitação de quem pensa diferente e do risco de nós estarmos no filme representado por algum dos personagens, talvez pelo próprio Eichmann...

 
© 2014 Tiago de Lima Castro

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