Hannah Arendt: Os Riscos do Pensamento
Pensar é um ato solitário... |
O
filme foi dirigido por Margarethe von Trotta (1942-), importante
cineasta do cinema novo alemão, a qual já havia tido o desafio de
dirigir Rosa de Luxemburgo (1986) também sobre uma mulher
destacada por seu pensamento e suas ações. Ambos os filmes,
coincidentemente, foram estrelados por Barbara Sukowa.
Este
filme apresenta grandes desafios à diretora: como falar de uma filósofa
sem estereotipá-la como uma “deusa da razão”? Como não cair e mera
biografia esquivando de sua produção filosófica? Como apresentar as
ideias filosóficas com clareza e profundidade, porém sem ser chato ou
exigir erudição por parte do espectador? Com fazer o expectador refletir
através do filme não somente através dos diálogos?
Há uma frase dita por Martin Heidegger (1886-1976) que conduz toda a experiência que o proposta pelo filme: “pensar é um ato solitário...”.
A filosofia de Heidegger influenciou o pensamento de Arendt por ter
sido seu professor e depois amante, porém, Heidegger tornou-se membro do
partido nazista. Por mais que essa relação não seja central no filme,
os poucos momentos em que se aborda essa relação nos mostra a complexa
relação dela com o trauma dele tornar-se nazista e mesmo assim,
continuar a influenciando-a em suas relações. Essa solidão perante a
ausência de seu antigo mestre e amor é mostrada de maneira sutil, porém
efetiva.
Como
judia alemã, acompanhar o julgamento de Eichmman naturalmente a faz
rever seus traumas do nazismo, o que poderia levar a meramente externar
todo o ódio por ele e pelo nazismo em suas análises, no entanto,
enquanto filósofa ela necessita isolar-se dos próprios sentimentos e
preconceitos para analisar friamente o que está sendo feito ali, o quê
está sendo julgado efetivamente e qual a origem de todo mal efetuado por
Eichmann e por outros nazistas. O filme nos faz sentir esse isolamento
de si mesmo através da belíssima atuação de Sukowa e dos recursos
cinematográficos utilizados.
Sentimos a solidão de Arendt ao ser atacada publicamente devido suas polêmicas conclusões filosóficas do julgamento, que deixou de ser mera narração jornalística do julgamento para uma reflexão sobre a origem do próprio mal. Para a filósofa, o mal efetivado por Eichmann e pelos nazistas, em sua maioria, não foi devido a um aspecto demoníaco ou monstruoso de suas personalidades, porém, surge do ato banal de meramente obedecer a ordens sem questioná-las... Não vou aprofundar a discussão sobre o conceito de banalidade do mal no filme, para não estragar a sua experiência com o filme.
Porém,
ela não é somente atacada pela opinião pública, mas as pessoas mais
próximas dela também a atacam. Além de isolar-se de seus anseios de
punir Eichmann por seus crimes, a dor de sentir os mais próximos,
intelectuais, membros da universidade que dá aulas, é extremamente
intensa. O pensamento é solitário porque a filósofa a tornar-se
solitária graças a ousadia de pensar aquilo que ninguém havia pensado,
assustando a sociedade que a ataca pelo medo de pensar o novo. Somente
em jovens alunos, além do marido e mais algumas poucas pessoas próximas
que não deixam seu isolamento ser total.
A
maneira como a personagem é apresentada é incrível, pois sentimos que a
personagem é alguém de carne e osso que ousou pensar, e não uma deusa
da razão acima das consequências de sua ousadia. O filme utiliza-se de
cenas cotidianas dela com amigos, o marido, para mostrar a banalidade
presente em sua vida, da mesma maneira que esta é presente em nossas
próprias vidas. Inclusive, o filme não romantiza sua vida pessoal. A
feminilidade de Arendt é mostrada em pequenos gestos de seu cotidiano, o
que foi possível pela atuação de uma atriz experiência e pela condução
da diretora. Ai está o encanto na feminilidade e banalidade de sua vida
pessoal ao mesmo tempo em que empreende ousadas reflexões.
Sentimos
os riscos intrínsecos do pensamento tanto a nossa própria
interioridade, como na reação social sobre ele. Afinal, o movimento
solitária de pensar, nesse diálogo consigo mesmo, pode nos levar a
conclusões distante do que pensávamos antes, o que exige a coragem de
isolar-se de seus preconceitos e, talvez, alguns sentimentos.
Simultaneamente, o risco de sermos isolados e atacados socialmente por
pensar diferente fica claro com o paradoxo que é a necessidade desse
processo para não repetirmos os erros do passado.
Risco
esse assumido pela diretora, afinal, falar nesse tema na Alemanha ainda
não é fácil, inclusive pelo pensamento de Arendt colocar em cheque uma
série de práticas cotidianas que, talvez, possam gerar terríveis
situações como as provocadas pelo nazismo.
Outro
grande acerto do filme é não impor o pensamento de Arendt aos
expectadores, o qual é apresentado dentro das possibilidades que um
filme tem de abordar conceitos, porém não demoniza quem discorda de suas
conclusões. Isso permite que o filme acenda a chama da reflexão sem
buscar converter ninguém. Ao conseguir esse equilíbrio, o filme leva os
expectadores a saírem do cinema refletindo sobre ele, sobre as propostas
de Arendt, sobre os argumentos contrários a sua proposta, a não
aceitação de quem pensa diferente e do risco de nós estarmos no filme
representado por algum dos personagens, talvez pelo próprio Eichmann...
Texto originalmente publicado em: http://supernovo.net/oscinefilos/hannah-arendt-os-riscos-do-pensamento/
© 2014 Tiago de Lima Castro
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